terça-feira, 27 de setembro de 2011

A última armadilha do sistema

O macho demoníaco. Richard Wrangham e Dale Peterson. Tradução de M.H.C. Côrtes. Ed. Objetiva. Rio de Janeiro, 1998.

A cada dia percebe-se com assombro o crescimento da violência em nossa sociedade. Os exemplos se repetem nos jornais. São festas, em princípio pacíficas, que terminam com brigas violentas. É o alarmante índice de homicídios entre jovens. São as reações de ódio exagerado, nas pequenas discussões cotidianas. Afinal, o que leva o homem à agressão? Haverá em nós uma tendência natural para reações violentas? Os autores apresentam neste livro respostas surpreendentes a estas questões. Partindo de instigante pesquisa sobre o comportamento social agressivo dos primatas, os autores revelam muito sobre a própria condição humana.

Contradizendo a crenças de que chipanzés na selva são criaturas mansas e pacíficas, Wrangham e Peterson observaram, desde 1971, chimpanzés machos da África praticando estupros, ataques nas fronteiras de seus territórios, surras brutais, guerras contra grupos rivais. Ao longo do livro eles sugerem que a violência dos chipanzés precedeu o comportamento agressivo do homem. Por esta perspectiva, o homem contemporâneo é o atordoado sobrevivente de uma longínqua tendência à agressão. Para sustentar esta tese, os autores examinam casos de estupro entre orangotangos, infanticídios entre gorilas, práticas violentas provocadas por machos, estabelecendo paralelos com histórias de agressão entre tribos indígenas e, mesmo, em nossa sociedade “civilizada”.



Em suas últimas páginas:

“Esse grande cérebro humano é o produto mais aterrorizador da natureza.

Ao mesmo tempo, porém, ele é o melhor e mais promissor dom da natureza. Se temos a maldição de um temperamento demoníaco masculino e uma capacidade maquiavélica para expressá-lo, somos também abençoados com uma inteligência que é capaz de, através da aquisição da sabedoria, afastar-nos da mácula de 5 milhões de anos do nosso passado de grande primata.

A inteligência é algo que nos é familiar, um livro, um velho amigo. Porém, o que é a sabedoria?

Se a inteligência é a capacidade de falar, a sabedoria é a capacidade de ouvir. Se a inteligência é a capacidade de enxergar, a sabedoria é a capacidade de ver ao longe. Se a inteligência é um olho, a sabedoria é um telescópio. A sabedoria representa a capacidade de deixarmos a ilha de nosso próprio ser e sairmos mar afora. Para que assim nos vejamos como outros nos vêem, e para ver outros dentro e além da primeira dimensão ou contexto de tempo, de espaço e de ser.

Em outras palavras, a sabedoria é a perspectiva.

O temperamento nos diz o que nos importa. A inteligência ajuda a gerar opções. E a sabedoria é capaz de nos levar a considerar longínquos desfechos, para nós mesmos, para nossos filhos, para os filhos de nossos filhos... e talvez até mesmo para as mentes na floresta”.



Apesar de revelar a natureza sanguinária latente em todo homem, O Macho Demoníaco traz uma mensagem de esperança. É um instigante desafio que cada um de nós reveja sua vida com mais inteligência, afastando-se o mais possível da irracionalidade agressiva desses nossos parentes mais próximos.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

cartografia cognitiva

Cartografia cognitiva da paisagem iniciática


Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale à pena.

Clarice Lispector

Sobreveio, naquele momento, um estado de suspensão das certezas até então possuídas.

Anne Cauquelin



Como educadora esbarrei em obstáculos na prática pedagógica no ensino da arte, vivi dilemas gerados no fazer do meu ofício. Inquietei-me e uma latente insatisfação tomou o meu modo de ensinar-aprender. A insatisfação foi o mote para me por a caminho de novas proposições em direção a uma pedagogia contemporânea no Ensino da Arte.

Nenhuma “escola” é capaz de proporcionar conhecimentos artísticos e estéticos maiores que a própria vida e a própria natureza, e aqui a paisagem da obra de Francisco Brennand foi determinante para que houvesse um tipo de deslocamento e ampliação do meu próprio olhar, primeiro em relação à escolha de ser educadora, no sentido de buscar uma autoria pedagógica, que ao invés de consumir soluções para o meu fazer pedagógico pudesse me descolar de conteúdos a serem desenvolvidos numa seqüência de atividades. Depois em relação ao meu próprio pensamento, na busca de outras vias, o começo de uma outra coisa, uma nova paisagem cognitiva mais sábia e feliz. Brennand em seu percurso de fazer-se artista escolhe a matéria prima de seu trabalho e o lugar de fazê-lo.

Nessa perspectiva, assumir o risco de interligar “dados aparentemente sem sentido” numa dialogia que permita ler melhor a incerteza, aprender e ensinar conhecimentos pertinentes numa ecologia das idéias e da ação é o desafio nessa cartografia cognitiva que tem no conceito de paisagem uma analogia a leitura de imagens tão presente no ensino das artes visuais.

Se abríssemos as pessoas, encontrar-se-iam paisagens.

Levi-Strauss

A paisagem do encontro com a condição humana

Em abril de 2002 conheci, o Museu/Oficina Cerâmica de Francisco Brennand e também o próprio artista. Durante o encontro, Brennand falou sobre ter elegido como centro do seu mundo de criação, a paisagem de sua infância, no Bairro da Várzea (Recife-PE) e de como o uso do barro como matéria prima, o havia trazido para um mundo arcaico, ancestral e mitológico, aquelas falas me marcaram pois, vi naquele momento o artista como alguém com poder de manipular voluntariamente a linguagem e seus símbolos assumindo a trágica condição humana em seu esperançoso direito de sonhar.

Na época desse encontro, que aconteceu durante uma viagem de campo proposta pela Profª Regina Guedes na Disciplina de Cerâmica, eu cursava a graduação em Artes Plásticas na UFRN e na busca de referencias bibliográficas para a realização de um trabalho sobre a Arte no contexto da Educação Ambiental, encontrei o livro Topofilia, do geógrafo Y-Fu Tuan, que trata do sentimento que se tem por um lugar e de como a representação que se tem desse lugar interfere na percepção e valoração do mesmo ressaltando que, estudando a relação das pessoas com a natureza através dos sentimentos e idéias que elas têm sobre a paisagem, podemos melhor entender a condição humana.

A posterior deste momento interessei-me por leituras na área da Geografia Cultural, que grosso modo, trata da diversidade dos gêneros de vida e das paisagens, elegendo a cultura como importante componente das relações entre humanidade e ambiente, através do estudo das representações e sentimentos de identidade, evidenciando o papel das representações como interpretações simbólicas do ambiente, numa abordagem que analisa e descreve o mundo tal qual as pessoas o experienciam, tornando possível entender como criamos, percebemos e nos vinculamos às paisagens nas quais vivemos. (CLAVAL, 1998)

Este foi o primeiro encontro com a paisagem que me iniciou no processo de perceber minha própria condição de ser uma educadora passível de trilhar inumeráveis caminhos na cartografia dos saberes em Arte, escolhendo e selecionando entre muitas possibilidades e pontos de partida “porque nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha”.(Bachelard, 1986. P.95)

Sob o impacto causado por este primeiro encontro escrevi para a Profª Regina Guedes, um pequeno texto, de maneira bricouler, que serviu no período como relatório da viagem para a disciplina:

Assim Falou Zaratustra

“(...) Zaratustra, porém, olhava para o povo e se admirava. Depois, falou assim:

O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem, uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso caminho, perigoso olhar-para-tras, perigoso arrepiar-se e parar.

O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é que ele é um passar e um sucumbir”.



Começo o registro desta viagem, com esta citação,que por coincidência foi encontrada na história em quadrinhos de um personagem chamado Sandman - O Mestre dos Sonhos, que povoa seu reino com uma variedade enorme de entidades e que pode conceber seres arquétipos que são comuns a um grande número de sonhos, enquanto outros seres de seu reino são imaginados pelos próprios sonhadores, pois ela fala do que é “ser humano” e dessa existência belamente trágica como as esculturas de Brennand.

Durante a viagem para Recife, devorei dois livros que tratam das obras de Francisco Brennand e para minha surpresa o artista é chamado por alguns de seus críticos de “Mestre dos Sonhos” dentre outras denominações oníricas.

Em minha cabeça, ecoavam partes da aula de Metafísica que havia assistido na semana anterior que tratava do método utilizado por Platão para definir o que é ser Filósofo, diferenciando-o do Sofista e do Político, através do exemplo do pescador de anzol e da classificação de gêneros de fazeres (poiesis) e do questionamento de “em que se fundam as evidencias”. Tudo é uma questão de Arte, no sentido da criação, do fazer, do vir-a-ser, do tornar-se.

Sobre o trabalho de Brennand, li que o que conta em sua obra é a temática de seres e conceitos mitológicos, personagens históricas, que falam da história do homem, sua trajetória sobre o planeta (sobretudo seus sofrimentos e tragédias) e do sexo como força motriz e da existência de uma força ética, sem pudores, que tem ao mesmo tempo algo de primitivo, de cruel e de inevitável.

Logo ao chegar deparei-me com uma inscrição em latim que diz tudo sobre o conjunto de esculturas ali expostas: IMMOTUS NEC INERS- Imóvel, mas não inerte. Inscrição exemplificada pela presença de dois antigos fornos cerâmicos desativados onde habitam como peças centrais um “feiticeiro” e no outro um “demônio”, que me remeteram ao conceito de complementaridade, além da presença de peças coloridas de branco, amarelo e verde, (cores que não existem em altas temperaturas de queima na cerâmica), marcas do experimentalismo do inicio de seu trabalho cerâmico.

Outro fator que me chamou atenção foi à presença de várias cópias de uma capa da Revista Veja, datada de Abril de 2001, cujo título era: “A Vingança da Natureza”, que me revelou o forte caráter de preocupação ambiental, contribuindo assim, para que o conjunto de sua obra fosse mais significativa ainda para mim.

“A arquitetura eterniza e glorifica alguma coisa, por isso não pode haver arquitetura onde não há nada a glorificar”.

No Museu/Oficina de Francisco Brennand, naquele espaço sagrado, quase ritual, há glorificação do sonho, da existência cruel e ao mesmo tempo divina do ser humano na natureza”.



De 2002 até hoje muito se passou na vida e na profissão, inquietações pessoais e profissionais me fizeram voltar a escolher o caminho de exercitar o bem pensar, por conceber a construção de conhecimento como um exercício que deva alargar os limites disciplinares, para que os ensinamentos do barro, transformado em paisagem por Francisco Brennand, fossem compartilhados com a afetividade e sabedoria que fazem parte de minhas referências para ler o mundo imerso na incerteza e contribuir com minha palavra para a “utopia realista” que vem sendo construída na reforma do pensamento humano.



Em 2008 encontro dizeres de uma natureza que me toma de tal identificação que vibro:



“O intelectual é aquele que manipula, constantemente a mesma interpretação,inserindo-a num campo maior, observando suas transformações, dialogando com ela, pensando sobre ela em outros contextos próximos e distantes. O intelectual é um artista do pensamento, porque dá forma a um conjunto de dados, aparentemente sem sentido e desconexo. Onde quer que se opere essa complexa arte do pensamento ai está em ação um intelectual. Por isso podemos falar em intelectuais da tradição. Eles são os artistas do pensamento que, distantes dos bancos escolares e universidades, desenvolvem a arte de ouvir e ler a natureza á sua volta” (Almeida, in: Silva, 2007, p.10).



Vibro porque senti um abraço acolhedor às minhas imaginações sonhadoras de uma educação ampliadora dos níveis de leitura do mundo que possa explicitar “com mais facilidade e nitidez a dialógica entre a diversidade da natureza e unidade do padrão que interliga”.



“Tudo que o homem faz, que ele inventa, ele pensa que fez algo diferente. Mas eu não vejo por esse lado. É significante a algo que já existe.O homem fez o computador que armazena tudo. É como você: já nasceu e armazenou tudo o que aprendeu. As coisas imitam o que já existe no planeta” (Silva, 2007, p. 21).



Encontrei minhas paisagens de pensar e fazer dialogar modelos explicativos distintos, tanto para a vida quanto para suas mais diversas representações paradoxalmente complementares entre si e que permitem construir um conhecimento ecossistêmico, quaisquer sejam os domínios da produção desse conhecimento.

No caso desse barro primordial que modelo agora em forma de dissertação, o domínio cognitivo gravita em torno das proposições contemporâneas no Ensino da Arte no Brasil e da auto-eco-organização do ser educadora disposta a assumir o risco de reformar o próprio pensamento contribuindo assim para formação de pessoas capacitadas à enfrentar questões problemáticas de seu tempo numa ética da dependência e solidariedade entre o ser humano, a natureza, o cosmo e a própria realidade.







Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que se escolhera representar o mundo, o corpo ganhava uma nova firmeza, a cabeça podia às vezes se manter altiva como a de quem superou um obstáculo: a pessoa era.

Clarisse Lispector



A paisagem do encontro com a pesquisa

Na paisagem deste segundo encontro esta inserido o Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM na UFRN, no qual se pode trilhar um caminho ciêntifico integrado com saberes da tradição e abertos as possibilidades da criação intelectual. Essa correspondencia entre a natureza apaixonada da boa ciência e de uma filosofia encarnada é manifestação ousada de uma tentativa de dialogicidade entre logos e poesia, entre razão e sensibilidade, entre vida e representação, entre ciência cartesiana e ciências complexas. Ali se alimenta essa paixão-vício que é boa para pensar o sensível e inteligivel partindo-se de pespectivas corporais, filosóficas e científicas diferentes desse Ser-Estar no mundo, gênese dos sentidos através dos quais questionamos e buscamos compartilhar da experiência que permite criar métodos para classificar a recorrencia das narrativas dentro do sistema das culturas humanas.

No GRECOM se concebe uma produção do conhecimento contemporâneo, como um exercício que vem alargando os limites disciplinares, permitindo compartilhar a afetividade com estratégias de pensamentos e sabedorias que fazem parte, das referências humanas para ler o mundo, imerso nas incertezas, e contribuir para uma reforma do pensamento humano essa “utopia realista”, tornando essencial fazer do trabalho de pesquisa científico um constante ligar, religar e dar voltas concêntricas em desequilibro sobre nossas paixões/pulsões temáticas, ou seja, sobre nós mesmos.

Aqui ocorre a meu ver o inesperado imbricamento do conceito de paisagem no pensamento complexo: a utopia e o realismo na produção de representações. A arte e seu ensino ousam provocar fissuras na percepção da natureza e da cultura. A produção da paisagem situa-se entre o sonho e a realidade. Faz-se necessário encontrar novas e antigas interdisciplinaridades que enriqueçam esse conceito.

“A terra (o topos), paisagem e ferramenta de produção, situa-se entre o sonho e a realidade. O paisagista tem em consideração a realidade do solo (o meio ambiente) e projeta um sonho. Partilha o seu trabalho. Colabora com a natureza, com o inesperado. O território, quanto a ele, muda de função e de representação: podemos sair do mundo da exploração para entrar no da cultura.” (Châteauvallon, 1996, p. 17).

Assim, significado e imaginação passam a ser termos fundamentais para produzir conhecimento, pois ao incluir em sua abordagem elementos significantes para diferentes sujeitos, a paisagem deixa de ser vista como pano de fundo das atividades e acontecimentos humanos e passa a ser criada, vivida, configurada tanto pelas percepções, valores e atitudes individuais como pelas representações coletivas e, desse modo, sempre se traduzindo numa oportunidade de (re)construção de significações do conhecimento, pois rompe com tradições e reinventa a representação da natureza idealizada pela perspectiva renascentista. A representação da paisagem assume uma formulação construída culturalmente, junto com a construção do mundo e de nós mesmos.

Da mesma forma significado e imaginação são termos fundamentais para produzir conhecimento nas abordagens contemporâneas no Ensino da Arte e os elementos significantes das linguagens artísticas para diferentes sujeitos, deixam de serem vistos como pano de fundo no processo ensino-aprendizagem e passam a ser fundamentais para a criação de poéticas vivas, configuradas tanto pelas percepções, valores e atitudes individuais como pelas representações coletivas e, desse modo, sempre se traduzindo numa oportunidade de (re)construção de significações do conhecimento artístico e social, pois rompe com tradições e reinventa a representação da própria vida, possibilitando experiências de ensino e aprendizagens inventivas, capazes de nos reinventar como propositores do próprio mundo em que vivemos .

Considerando que a paixão que nos move por determinados temas instaura uma estratégia metodológica para religar conhecimentos, percebemos que eles funcionam como lentes que permitem potencializar e transpor de maneira criativa e, por vezes, metafórica, as experiências de produzir conhecimentos selecionados por aspectos que coincidem com nosso próprio pensamento, compartilhados através da diletante consciência de sabermos que somos diversos de nós mesmos.

Participamos da formação do futuro em virtude de nossa capacidade de conceber e reagir a novas possibilidades e trazê-las para fora da imaginação, experimentando-as na realidade. Tal é o processo da imaginação radical no mundo da natureza. Participamos da formação de um modo de operar o pensamento que reage as novas possibilidades trazidas por estas tensões e reconhecemos que a imaginação, a sensualidade, a intuição e até mesmo a paixão, pode dar acesso a um conhecimento que reconcilia o papel do ser natureza humana e educadora/pesquisadora/propositora que se autoforma de acordo com a idéia de que “qualquer reforma efetuada na educação deverá, antes de mais nada, começar pela reforma dos educadores”. (Morin, 2009).

Vida e arte imbricadas visceralmente por meio da criação encarnada em que o vício do sensível não é obstáculo a ser vencido pela razão, mas sim um sintoma íntimo do corpo a ser metabolizado, germinando, crescendo e se desdobrando como um princípio de criação intelectual não esquizóide e criativa.

O sonho, o devaneio, a alucinação, a paixão, o vício são experimentados como um artifício, uma artimanha ao adentrarmos no campo codificado da linguagem artística, apresentando soluções que a reintegram à vida e à criação, de um presente percebido como constante nascimento para o passado e para o futuro, numa mobilidade, por vezes, vertiginosa para nossas bases cognitivas construídas, ainda, num paradigma de solidez.

O sujeito e o mundo, a parte e o todo, a prosa e a poesia, a razão e a emoção, Eros e Tanatos – sempre esse jogo de distinções como categorias necessárias para produzir conhecimento do estar no mundo por meio da linguagem e da experiência.

Foi esse uso da linguagem poética, metafórica e literária que me fez passar a diferenciar e a fazer a gradação da minha experiência humana de produzir conhecimento por outras vias para adentrar ao caminho de ser pesquisadora de uma ciência que é o mistério vivo que se não indaga, indagado por um método processual que permite o espaço da criação, por meio da narrativa enquanto operador cognitivo.

No GRECOM, são apresentadas várias formas do trabalho científico que consideram a paixão como mola propulsora para construção de pequenas certezas na produção de conhecimento científico que faz coexistir e comunicar a cultura humanistica e a cultura científica.

“A cultura humanista revitaliza as obras do passado, a cultura científica valoriza apenas aquelas adquiridas no presente. A cultura humanistica é uma cultura geral que, por meio da filosofia, do ensaio e da literatura coloca problemas humanos fundamentais e incita à reflexão. A cultura científica sucita um pensamento consagrado à teoria, mas não uma reflexão sobre o destino humano e sobre o futuro da própria ciência” (Morin, 2009 p. 19).

Analisando as paixões do meu pensamento demoníaco, esse produtor de conhecimento, encontrei um olhar recorrente sobre o cenário onde se representa a atuação humana, esse quadro de vida, a paisagem, esse conceito clarabóia de mim, uma educadora bricoleur, que sempre levou em conta o onírico, o poético, o improviso, a intuição e o imaginário nas proposições pedagógicas no Ensino da Arte.

Neste sentido, a dissertação investiga as relações entre a paisagem do Museu/Oficina Cerâmica Francisco Brennand, as representações que fazem do artista o construtor de uma paisagem que liga saberes diversos e explicita a transformação de um saber tradicional, a cerâmica, em paisagem mítica de onde emerge um modo transdisciplinar de entendimento humano que rejunta saberes dispersos e caminha para uma transversalidade retroalimentada pela dialogia natureza e cultura e pelo alargamento do campo da disciplinaridade e da simplificação na produção de conhecimento artístico.

Assim, instigada a exercitar a imaginação criativa na produção do conhecimento da ciência é que o conceito de paisagem é invocado na pesquisa como um operador cognitivo para pensar as relações entre cultura e natureza. Refletir sobre tais relações significa pensar sobre os limites, tanto materiais como simbólicos da experiência de alargar limites sociais, naturais, normativos, estéticos, culturais e educativos.

A paisagem,na dissertação se apresenta como um meio em que o ser humano exerce sua singularidade poética, transitando assim por campos ou camadas de conhecimentos diversos capazes de multiplicar uma visão rearticuladora do mundo. Tal conceito atravessa domínios disciplinares possibilitando uma cartografia cognitiva transdisciplinar, caracterizada por colaborações entre diferentes domínios cognitivos, possibilitando o compartilhamento de estratégias complementares, interrelacionais e recíprocas entre diversas formas de estruturar a produção de conhecimento através da Arte Educação.

A leitura da paisagem do Museu Oficina Cerâmica de Francisco Brennand, proporciona uma experiência do mistério vivo que não se indaga, através do trabalho artístico como um testemunho do artista sobre si mesmo, criando no mistério, no enigma e sem querer todas as respostas.

A idéia de pesquisar sobre a paisagem e Francisco Brennand surgiu ao percebê-lo estarrecido com a condição humana e mesmo assim em seu papel de artista que bem sonha a força terrestre do barro, agir através de seus devaneios da vontade, em dizeres de Bachelard. Com base nesse entendimento, a dissertação tem no conceito de paisagem uma metáfora importante para compreender o inacabamento, nossa principal característica, tendo o Museu Oficina como uma paisagem impar.

A idéia de inacabamento, proposta pela obra de Francisco Brennand é figurativa de uma idéia de educação em que os processos de conhecimento não se reduzem a etapas pré-estabelecidas ou categorias abstratas, provocando assim, múltiplas representações que permitem uma modulação de sentidos, numa experimentação do artista com o público que visita o Museu/Oficina, em direção a uma elucidação intelectual, afetiva e política, posto provocar uma leitura de mundo que poderá contaminar uma compreensão de educação cujos limites, contornos, posições e significado não seja unificado e unificador, mas que permita diferentes aproximações, pontos de vista e trajetórias. Essa leitura de mundo pode ampliar nossas categorias lógicas de uso da linguagem, como uma forma de imputar novos sentidos ou retomar outros deixados para trás, podendo criar outras maneiras de comunicação através da vontade de ação, que ao invés de repetir o trabalho com as matérias, pode criar através de uma imaginação radical.

Esse bem sonhar uma educação, para um mundo, onde todos sejam felizes mesmo com interpretações e representações diferentes dos fragmentos de saberes que não correspondem nunca à totalidade dos conhecimentos que compõe uma unidade aberta , sem costura final, sem preocupações com encaixes perfeitos que se chama vida, foi o que me disseram os autores do livro “ A Natureza me Disse” da qual gostaria de citar certas sabedorias fazendo dialogar sabedorias que encontrei tambem na obra e na pessoa de Francisco Brennand.

Para tecer esses argumentos, a dissertação parte dos estudos de Cauquelin sobre paisagem, expõe fragmentos da biografia do artista pernambucano Francisco Brennand, seleciona três visões da paisagem enquanto natureza, estética e história, trata das relações conceituais entre paisagem e representação no sentido de privilegiar a imaginação e o imaginário na sua dimensão de criação continuada, dialogando principalmente com dois autores: Castoriadis e Bachelard.

A transformação mítica-simbólica da paisagem do Museu Oficina terá no registro fotográfico e de vídeo o mote para tratar sobre os mitos e metáforas como operadores cognitivos na construção do conhecimento e por fim, apresento uma idéia de Ensino de Arte inspirada na criatividade e diversidade metodológica.

Neste sentido, a estrutura dos capítulos está sendo desenhada seguindo a seguinte forma:

No primeiro capítulo, o universo mítico-simbólico do Museu/Oficina, em imagens fotográficas, será o mote de “análises” sobre a linguagem dos mitos e metáforas na construção do olhar questionador do modo como vemos.

No segundo capítulo diversos significados se misturam e operam em complementaridade para produzir conhecimento no sentido de reformar meu próprio pensamento, movimento tão necessário à reforma da educação, como explicita Morin no livro Educação e Complexidade, como um todo e mais especificamente no ensino de artes visuais que tem na leitura de imagens um eixo articulador das ações pedagógicas no ensino da arte.

No terceiro capítulo acompanharemos o devaneio da imaginação criativa, e faremos contato com os ensinamentos do barro na obra de Francisco Brennand, através do polifônico conceito de paisagem.

No quarto capítulo, a tessitura de uma cartografia dos saberes necessários para fazer do Ensino de Arte um território de invenções. Seremos aqui acompanhados conceitualmente por autores como Ana Mae Barbosa, Mirian Celeste e Erinaldo Alves, tecendo uma cartografia que relaciona minhas vivências no processo de auto-eco-formação e o papel da educação estética nas aprendizagens criativas e diversas que nos convidarão a perguntar o simples, como a primeira e ultima causa do pensar, provocando assim transgressões que convergem nas margens e voltem a sair com algo próximo dessa liberdade de criar que não conseguimos definir, numa trama conceitual que me reinventa como professora-pesquisadora-propositora.



Francisco Brennand :Um sonhador da matéria

Sobre um alicerce bem fundamentado por seu pai, homem fascinado pela matéria cerâmica que resolve investir maciçamente na pesquisa da cerâmica e da porcelana, criando o que se pode chamar de antiusina, foi que Francisco Brennand começa em 1971 a devanear com a cerâmica os ensinamentos do barro.

Em plena Várzea do Capibaribe, sob o cenário histórico da usina, numa região extensa ligada à história da Restauração Pernambucana, Ricardo Lacerda de Almeida Brennand o pai de Francisco Brennand inicia em 1917 a construção de uma fábrica de tijolos e telhas, para em 1945 montar uma fábrica de porcelana e em 1954 criar uma fábrica de azulejos, que foi desativada em 19 e quanto?

Brennand conta que o que realmente o interessou desde o primeiro momento que chegou à velha fábrica em ruínas foi quase de uma maneira fetichista, conservar todo um passado de conhecimento e de experiências em torno da cerâmica:



“ Meu pai sempre foi uma pessoa fascinada pela matéria cerâmica, o que o levava a colecionar porcelanas. E eu não tenho feito senão, talvez de uma maneira mais artística, aproveitar a soma de uma série de trabalhos que foram iniciados por ele. Quando eu tive acesso aos papéis de meu pai, percebi como ele se interessava a fundo pela arte cerâmica. A sua paixão pela forma (embora ele não modelasse), era tão intensa que ele chegou a contratar modeladores, como foi o caso de Abelardo da Hora que estagiou nesta fábrica antes de fechar.” (Brennand, 1995)

Em 1942, Brennand recebe orientações de Abelardo da Hora, mas apesar da convivência com a cerâmica do pai, depreciava o contato com a argila, pois a pintura a óleo o atraía mais. Por essa época, cuidar dos negócios e estudar Direito parecia seu destino, mas seu pai comprou uma coleção de pinturas parisienses que estavam muito avariadas e solicitou que o filho acompanhasse a restauração dos quadros, feita pelo pintor Álvaro Amorim, um dos fundadores da Escola de Belas Artes de Recife, viúvo que morava sozinho num sítio rodeado de 40 gatos, trabalhando a hora que queria, passando o dia de pijamas e com um cigarro no canto da boca, como conta Brennand. O estilo de vida do pintor, oposto ao que ele vivia, encantou Francisco Brennand, que passou a fugir do colégio para ir vê-lo.

Depois disso, alguns pintores da Escola de Belas Artes passaram a freqüentar a casa de seu pai aos domingos para pintar. Em 1947 Brennand, pinta sua primeira paisagem, participa e ganha no Salão do Museu do Estado de Pernambuco o primeiro prêmio, sendo esse um fato decisivo em sua vida. Um novo primeiro prêmio em 1948 confirmou a guinada de sua carreira como artista. Deu adeus ao projeto do Direito, e foi convidado no mesmo ano por Cícero Dias a ir para Europa em caráter experimental.

A paixão pela pintura falou mais alto. Ficou na Europa de 49 a 1953, encontrou o caos e reencontrou a velha argila, matéria-prima da Cerâmica São João, manipulada nas obras cerâmicas de Picasso, Miró, Gauguin e alguns outros gênios, foi impactado. Decidiu estudar cerâmica em Úmbria na Itália e de volta ao Brasil, executou sua primeira grande obra cerâmica: um enorme mural no Aeroporto Internacional dos Guararapes, no Recife. Desde então continua seu trabalho artístico como pintor, mas o barro passou a ser o elemento motriz de sua obra como atesta em um de seus livros:

“ Logo que iniciei, muito claramente, as minhas preocupações de pintor me levaram a executar sobretudo painéis, porque eu estava condicionado a trabalhar em superfícies. A abordagem dos volumes foi um pouco mais lenta, só por volta de 1974, quer dizer, três anos depois é que começaram a aparecer os primeiros volumes.Sentia que esses espaços interiores não podiam ficar só com as paredes recobertas de painéis. Aproveitando aquilo que eu aprendi no tempo de Abelardo da Hora, quando ele trabalhou aqui por volta de 1942, também comecei a praticar a modelagem e pouco a pouco essas esculturas foram aparecendo e se fizeram realmente necessárias na medida em que eram fruto desses espaços, nascendo em função deles e fazendo com que hoje todo esse conjunto significasse alguma coisa. Sem elas acredito que teria sido um absurdo empreender a reforma da oficina. Elas é que de fato fazem significar” (Brennand, 1995).



Ao longo de mais de meio século Brennand vem dedicando-se através da argila e do forno, a sua torrente imaginária e racional, tendo o desenho, a pintura e a escultura como força motriz de sua obra e Oxóssi, orixá inquieto e viril, como guia de sua oficina onde tudo simbólico se entrelaça e nos convida a uma viagem iniciática.







Porque é certo que existe um saber não sabido, aquilo que não sabemos saber daquilo que sabemos.

Anne Cauquelin

As formas de uma gênese

Paisagem é um conceito ambivalente e escorregadio, que se destaca pela diversidade de abordagens que vão desde a pintura de paisagens, como um capítulo da história da arte, passando pelo paisagismo incorporado à arquitetura e urbanismo, pela geografia física ou humana, pela ecologia do movimento ambientalista, pela história, turismo, literatura, cinema, até sua extrapolação do teritório destes campos de saberes, transformando-se numa metáfora, que permite situar num panorama, qualquer assunto sobre o qual se queira discorrer.

Se buscarmos o sentido etimológico da palavra, teremos que paisagem é a porção de terra que a visão abrange. Significação tão ampla que não dá conta de duas principais perspectivas que surgem dessa conceituação: paisagem como representação imagética do que se vê ou como espaço referente.

Para que exista uma paisagem não basta que exista natureza; é necessário um ponto de vista e um expectador; é necessário, também um relato que dê sentido ao que se vê e experimenta. O olhar paisagístico é o olhar do exilado, daquele que conhece sua estranheza radical com as coisas, e recorda e constrói um passado, uma memória, um sentido.

Aqui vale pensar sobre o caminho sugerido por Coquelin, quando começa a tratar do tema em seu livro: A Invenção da Paisagem, que se propõe:

“a mostrar de que maneira a paisagem foi pensada e construída como o equivalente da natureza, no decurso de uma reflexão sobre o estatuto do analogon e no decurso de uma prática pictórica que, pouco a pouco, ia dando forma a nossas categorias cognitivas e conseqüentemente, a nossas percepções espaciais. Desse modo, a natureza só podia ser percebida por meio de um quadro; a perspectiva, apesar de artificial, tornava-se um dado da natureza, e as paisagens em sua diversidade pareciam uma justa e poética representação do mundo”. (Cauquelin, 2007, p. 7)

A autora ressalta que a paisagem só parece natural ao preço de um artifício permanente, tal artifício amplia seu alcance, posto haverem contemporâneamente diferentes abordagens da natureza, do real e de sua imagem devido a uma ampliação da esfera de atividades antes bem definidas que hoje mesclam territórios e ausentam fronteiras entre domínios.

A paisagem se dá pelo olhar cativado pela imagem que desvela e inaugura aquela visão que testemunha e doa sentidos para o “real” fora de nós, do qual somos parte constituinte posto a criarmos tais visões.

Longe de essa ampliação relegar a paisagem a um segundo plano, ou de recobrir sua imagem, essas extensões dão a ver com muita precisão o quanto a paisagem é fruto de um longo e paciente aprendizado, complexo, e o quanto ela depende de uma análise e de uma encenação dos elementos naturais – a água, a terra, o fogo e o ar – que, separadamente, permaneceriam invisíveis se não fosse pela arte do enquadramento e da composição, pois se trata da vida humana em seu próprio planeta; trata-se também, sempre, de formar e garantir os quadros de uma percepção comum. Muito mais que um “rótulo” estético, a paisagem confere uma unidade de visão às diversas facetas ambientais. (COQUELIN, 2008)

O olhar paisagístico é sempre um olhar estético, no sentido amplo da palavra, que indica uma conexão inseparável entre forma percebida e sentida. É o efêmero equilíbrio da paisagem, natureza e objetos fabricados articulados em sede estética, o que recorda ao homem sua condição. A paisagem é expressão da existência humana, marca espacial do encontro entre a Terra-Pátria (MORIN, 2009) e o projeto humano. Na paisagem a humanidade exerce sua singularidade.

Toda paisagem diz Levi Strauss(1996, p.54) – apresenta-se como uma imensa desordem que nos deixa livres para escolhermos o sentido que preferirmos lhe atribuir.

Nessa atribuição de sentidos, a paisagem se desloca de cenário, para ser “o terreno arcaico das grandes interrogações humanas” relativas à nossa perplexidade frente ao fenômeno da existência.

É preciso escolher nessa paisagem a experiência estética que amplia o olhar, propiciando outros aprendizados mais ampliados da realidade, pois toda paisagem é composta por uma combinação de vários elementos que se apresentam aos nossos olhos como cores, formas, linhas, texturas, escalas, dimensões e pelo significado que a ela atribuímos a partir de nossas idéias, valores e sentimentos. Ou seja, a paisagem passa a ser entendida como fenômeno vivido, através de aspectos subjetivos das relações humanas com o ambiente, como criação humana ligada a uma maneira de integrar nossos conhecimentos em relação à Terra e à vida.

Neste sentido a simbologia da paisagem é analisada de maneira que as representações da realidade passam a ser tão importantes quanto à própria realidade, numa educação permanente dos modos de ver e sentir esse tecido chamado “realidade” ou “natureza”, através da aprendizagem do mundo por meio da experiência, o que por si demonstra o quanto esse tecido é frágil e ao mesmo tempo resistente.

“É que a paisagem já está ligada a muitas emoções, a muitas infâncias, a muitos gestos e, parece, sempre realizados. Ligada a esse sonho sempre renascente da origem do mundo – ela teria sido “ pura”, de uma pureza na qual nos mantêm os edens e à qual retornamos, não obstante nosso saber”. (Cauquelin, 2007, p.31)

Quando é que a noção de paisagem, como conjunto estruturado, dotado de regras próprias de composição e como esquema simbólico do nosso contato com a natureza começou?

Segundo a autora, por volta do século XV na pintura holandesa e italiana.

“Tomada exclusivamente no contexto da pintura a paisagem se reduziria, pois, a uma representação figurada, destinada a seduzir o olhar do espectador, por meio da ilusão da perspectiva. A inesgotável riqueza dos elementos naturais encontraria um lugar privilegiado, o quadro, para aparecer na harmonia emoldurada de uma forma, e incitaria então o interesse por todos os aspectos da Natureza,como por uma realidade à qual o quadro daria acesso.Em suma, a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade completamente autônoma, ao passo que, de início, era apenas uma parte, um ornamento da pintura”( Cauquelin, 2007, p. 37)

Saindo do circulo da história da arte e perguntando pelas novas estruturas da percepção introduzidas pela perspectiva é que podemos nos fixar no mistério de seu nascimento, posto ai se instaurar a equivalência entre um artifício e a natureza.

“Nessa ótica, a paisagem é um “monumento natural de caráter artístico”; a floresta, uma “galeria de quadros naturais, um museu verde”. Essa definição, elaborada pelo Ministério da Instrução Pública e das Belas-Artes Frances em 1930, destaca a ambiguidade; reúne em uma fórmula os dois aspectos antagônicos da noção de paisagem: o ordenamento construído e o princípio eterno; enuncia uma perfeita equivalência entre a arte (quadro, museu, caráter artístico) e a natureza. Uma definição dessas tinha ao menos o mérito de não eliminar a dificuldade, de reconhecer que se trata de uma forma complexa, com duas vertentes que intercambiam atributos segundo uma regra desconhecida e cuja unidade é mantida na e pela experiência ordinária”. (Cauquelin, 2007 p. 41)















Uma encenação dos elementos naturais

O que o barro quer

O barro

toma a forma

que você quiser

você nem sabe

estar fazendo apenas

o que o barro quer.

Paulo Leminski



A apreciação estética da imagem/paisagem na obra de Francisco Brennand revela referenciais estéticos que pautam, seu olhar sobre o mundo e a realidade, sendo aqui apresentadas e analisadas simultaneamente e de um lugar processual que escolhe e cria caminhos da construção significativa do conhecimento em arte e através da Arte.

Para captar na imagem os elementos constitutivos e significativos, se faz necessário construir, a partir das características observadas e apreendidas textualmente, uma rede de relações que façam sentido para perceber, descobrir, refletir, pensar, interpretar, escrever e fazer associações advindas da própria imagem.

Através desse processo, as relações entre o contexto imagético do Museu/Oficina, suas qualidades e características perceptíveis, deixa decidir através das inferências do leitor/fruidor/participante, quais os aspectos ou conteúdos das imagens lhe são relevantes. Essa complexidade interpretativa relaciona às formas de ensinar e aprender arte a partir dos vínculos das imagens com as experiências de vida, bem como da busca de articulação entre teoria e prática, possibilitando assim uma alfabetização artística e estética.

A estruturação dessa forma interpretativa e crítica de abordar a leitura das imagens aqui propostas, não começa e nem se atém à análise formal, mas a uma realidade atual, contribuindo com a leitura de imagens e obras contemporâneas.

Busco assim a fala da experiência, construindo narrativas sobre as imagens que me invadiram e contaminaram no percurso da dissertação. Não cabe mais perguntar o que não sabemos sobre o que está escrito e sim, o que já sabemos e como é possível ampliar essas conexões.

A ênfase dessa dissertação é a leitura de imagens do Museu/Oficina que parte dela mesmas e das conexões propostas como provocadoras de inquietações e curiosidades me gerando como leitora de imagens vinculada às dimensões formais e também socioculturais, formando leitores inventivos de si e do mundo.

Uma passagem da mitologia ameríndia transcrita por Claude-Levi Strauss, nos conta que:

[...] o sol e a lua, que eram humanos, viviam antigamente na terra, e dividiam uma só casa e a mesma mulher. Ela se chamava Aoho, isto é, Engole-vento, e gostava do abraço quente do Sol, mas tinha medo do contato com a Lua, cujo corpo era frio. Sol resolveu fazer ironias sobre essa diferença. Lua, humilhado, subiu para o céu agarrando-se por um cipó, e ao mesmo tempo soprou sobre Sol, eclipsando-o. Quando os dois maridos desapareceram, Aoho se sentiu abandonada. Tentou seguir Lua até o céu, levando um cesto cheio da argila que as mulheres usavam para fazer cerâmica. Lua percebeu,e para se ver livre dela de uma vez por todas cortou o cipó que unia os dois mundos. A mulher caiu com o seu cesto, a argila se espalhou sobre a Terra, e hoje pode ser encontrada em vários lugares. (STAUSS,1985 p.23 e 24)

Esse mito fala de dilemas da vida, escolhas, dor e fragmentação. O ato de recolher a argila espalhada pela Terra, para com ela se fazer a cerâmica, nos faz refletir sobre a vontade humana para realizar as belezas prometidas através do trabalho das massas amassadas pacientemente, nos dizeres de Gaston Bachelard.

A massa argilosa trabalhada por Brennand, passa a ser vontade de ação, do onirismo por se realizar, da experimentação de nós mesmos em diálogo verdadeiro com a terra, esse seria então o primeiro ensinamento do barro.

Assim, o eixo da imaginação radical de Brennand, passa a ser um “centro de sonhos” onde a matéria se relaciona com a intimidade da energia do trabalhador e sustenta o seu devaneio particular, que garante a capacidade da terra como material e linguagem expressiva para um possível encontro do homem, consigo mesmo, e com seu entorno, a terra e a Terra.

O barro revela o destino e a condição humana de ser forjada como uma existência experimental.

O processo de trabalho realizado por Francisco Brennand no Museu/Oficina Cerâmica revela a realização do esforço humano, em recolher uma matéria prima da terra, preparar uma massa ideal com água e outros componentes minerais, e, com essa matéria argilosa, que é macia e resistente, sonhar e se expressar. Seu trabalho cerâmico escultórico é um “work in progress” realizado desde 1971 sobre o inacabamento que capta a imaginação e a sensualidade da percepção humana, intervindo na paisagem através de uma arquitetura da ruína.

Esse conceito de “trabalho em processo” surge como mais uma das lições quanto ao ato de produzir conhecimento. Em cada novo projeto o artista modela e registra saberes que se repetem em busca de conhecimento e compreensão de mundo, em imagens que se tornam resistentes com a queima.

A idéia que norteia sua criação é a restauração da beleza na sua forma primordial, barbara, primitiva remontando a uma forma de ser, ver e sentir o mundo dionisíaco, como afirma um de seus maiores comentadores:

“trata-se apenas de um erudito que escolheu dar a uma parte significativa de sua produção (não toda) um caráter e uma aparência arcaicos, porque fazia parte de seu projeto, de seu recado, da sua necessidade expressiva como um bom dionisíaco.

A intenção é criar um universo pagão, marcado pela reprodução através de imagens exageradas e primitivas onde emergem a força da sexualidade, numa proposta de retorno a elementos primitivos, a elementos primordiais que façam com que o homem restabeleça sua rota.

Brennand sempre soube do componente poderosamente catártico de sua arte, de que ela é necessária para poder pôr a tona alguns de seus demônios, exorcisá-los e conviver consigo mesmo. Lucidissimo, já disse aos 25 anos: “É impossível separar a arte de nosso próprio drama. (Há, aqui, uma nuance diferente; está falando do drama individual, não do humano). Exigia também “que a arte voltasse a seu primitivo lugar, que revelam um indivíduo frágil e inseguro, como qualquer outro; as que revelam sua natureza apaixonada e erótica.

Traçarei, partindo da análise do vídeo De Ovo Omini e da bibliografia consultada sobre o artista, três visões diferentes da mesma paisagem, que enfocam, sem esgotar as possibilidades interpretativas dos elementos simbólicos encontrados no Museu/Oficina Cerâmica de Francisco Brennand.

Ensinamentos do barro na paisagem como Natureza

Quando o artista fala de sua criação enquanto busca do belo que nem sempre é conseguido, numa visão romântica que expressa um tipo de nostalgia do tempo em que vivíamos próximos da natureza, além da visão de que todos os trabalhos realizados pelo homem são inferiores aos da natureza, pois como ele atesta:

“as diferentes formas de minhas cerâmicas, de minhas esculturas que as vezes causam perplexidade eu diria, não é por culpa minha. Não que eu não procure algo de extraordinário, eu procuro o que todos artistas procuram de uma certa forma, de uma certa maneira, eu estou a procura da beleza, mas nem sempre a beleza se deixa dominar e eu encontro efeitos que caminham num sentido contrário. Mas não é só do feio, do monstruoso, isso jamais me interessou, mas no sentido da ausência da beleza, como disse um filósofo inglês da metade do século XVI: “ a verdade não é a beleza”, então vamos mediar: nem toda verdade é a beleza ou a beleza não é totalmente verdadeira, existe um outro lado que nos escapa, esse outro lado que nos escapa as vezes acontece nas minhas esculturas. Eu trabalho nessa corda bamba, nesse fio da navalha, em cima de um fio muito tênue, aonde eu devo caminhar a procura de alguma coisa que coincida com o eixo do mundo, para que assim eu fique mais próximo da natureza, não na natureza, só deus, só um demiurgo e o homem não é um demiurgo, apenas ele faz tentativas.” ( Brennand in: Donovan, 2000, vídeo).



Ensinamentos do barro na paisagem como lugar

O sentimento pelo lugar é manifestado através do elo com sua região de origem, o ambiente de sua infância, seu canto no mundo, seu cosmos, lugar misterioso escolhido para brincadeiras diárias com seus irmãos, onde aprendeu com seu pai as primeiras lições de respeito a preservação, á natureza, tratado como memória construída de apego a terra e a tradição aprendida nas terras que são de sua família a mais de um século, eleito como centro do seu mundo de arte e beleza.

“eu sinto que minha região é circunscrita à Varzea, o lugar onde nasci. Todo mundo tem direito de eleger uma região privilegiada, escolher essa região, quer seja o local onde nós nascemos, ou o lugar onde vocês amaram pela primeira vez... então não existe o centro do mundo, existem vários centros e eu elegi a Varzea” (Brennand in: Donovan, 2000, vídeo).

As ruínas da Fábrica de Cerãmica São João são reconstruídas a partir de 1971 com intenção de preservar suas memórias do lugar e ao longo do tempo e do trabalho artístico foi se transformando num templo sacralizado, onde o passado se transforma em presente numa contínua afirmação de sua identidade.

Aqui percebemos que todos os eventos humanos têm um lugar, e que nossas lembranças e imaginação são afetadas por esse lugar particular onde vivemos, aumentando a valoração que lhe damos.



Ensinamentos do barro na paisagem como estética



Aqui encontramos várias visões da paisagem: “o poder e majestade da natureza, a harmonia entre o homem e a natureza, a marca da história sobre a terra, o caráter detalhado dos lugares. Cada uma delas representa uma cuidadosa seleção feita pelo artista” ( MAINING, 1976).



Neste sentido sua obra é tão complexa e moderna, multiforme e diversa:

“ dentro dos galpões, há fileiras com centenas de peças e salas com ela contornadas. No principal pátio adjacente, o artista criou um conjunto que tem a magia de templos ou sítios muitíssimos antigos, no qual misturou lagos, totens, colunas, altos muros inteiramente revestidos em cerâmica e uma arquitetura híbrida e meio delirante à qual não faltam sequer o arco românico” (ARAÙJO, 1998).

A idéia que norteia sua criação é restauração da beleza na sua forma primordial, bárbara, primitiva remontando a uma forma de ser, de ver e sentir o mundo dionisíaco. Criando assim um universo pagão marcado pela reprodução através de imagens exageradas e primitivas onde emerge a força da sexualidade, numa proposta de retorno a elementos primitivos, a elementos primordiais que façam com que o homem restabeleça sua rota.

“Essas formas primordiais nos levam ao começo de todas as formas,então vemos no pequeno templo a necessidade de uma imagem primordial, que levou ao ovo. Está lá o ovo suspenso por um fio de aço fazendo retomar ao começo da vida marinha, pela sugestão da cúpula azul, banhada pelos raios de sol. O templo pela construção normal parece neoclássico, mas existem elementos que remetem à presas de elefantes e cabeças de tartarugas transformando de imediato o sentido dessa construção numa construção bárbara. Bárbaro como um aspecto saudável do espírito humano, não só na arte, mas em várias outras atividades, de correções e restaurações da própria maneira de viver. O selvagem sempre viveu de acordo com a natureza, nunca em conflito com ela e que apesar da perplexidade diante da natureza que os levava à cultos aparentemente exóticos, acredito que a perplexidade deles era bem menor que a nossa, á medida que nos afastamos desses elementos, dessas formas primordiais e vitais”. (Brennand in: Donovan, 2000, vídeo).

Na Oficina Cerâmica de Francisco Brennand, as ruínas inspiraram a criação de uma paisagem onírica onde tudo é possível, posto que imagem e realidade se confundem e fundam uma nova realidade povoada de personagens da mitologia e da história, onde o artista se situa como um reinventor de mitos.

Os mitos presentes na obra do artista remetem aos terrores ancestrais da ambivalência com que diferentes culturas em todos os tempos trataram a concepção do feminino primordial, a metade perigosa da humanidade, a fonte do prazer e morte no gozo, o poder de geração da desordem que a vida representa, trazendo em seu ato criador o prenuncio do inexorável fim e uma devoção ao devaneio da imaginação que nos controla e distingue de outros animais, como a testa a inscrição de Borges grafada em pedra cerâmica: “ sabia que a sua imediata obrigação era o sonho”.

Suas mais de 2000 esculturas antropomórficas, zoomórficas, sexuais, totêmicas, encravadas em seu templo erguido em galpões e jardins - de caráter figurativo, sexual, trágico, feminino, mítico-histórico, vigorosamente arcaico – fazem parte de uma obra que se expande no espaço e também no tempo, preocupada em perenizar-se. “As coisas são eternas porque se reproduzem. Este é o grande enigma do universo”, ressalta.

A metáfora sexual em sua obra está mais relacionada ao sentido existencial da reprodução, da relação entre vida e morte. Para o artista, a sexualidade tem uma função cosmológica, pois a sexualidade sempre foi parte de uma hierofania, e o ato sexual um ato integral, logo uma forma de conhecimento.

É interessante que Brennand sempre fala da incompreensão da qual a humanidade padece, tanto a respeito do mundo como de si mesma. Neste sentido para ele a linguagem confunde, pois não explica o sexo, este é um enigma indecifrável e paradoxal, que mesmo assim permite o acesso a um tipo de totalidade para qual não temos instrumentos nem entendimento capazes de alcançar.

Nessa mitologia própria podemos destacar como matrizes estéticas antecedentes as imagens arcaicas, entre elas as esculturas votivas da Pré-história, a Arte Moderna com a produção de imagens do corpo disforme e fragmentado e a literatura presente em suas inscrições murais.

Olivio Tavares de Araújo, o principal crítico e curador da obra de Francisco Brennand, fala de uma divisão das obras em alguns subgrupos que combinam aspectos temáticos e formais, mas que na realidade não são estanques e estão sempre se interpenetrando uns aos outros. Assim temos: Sexualidade; Flora e Fauna; Personagens Históricas; Conceitos e Personagens Mitológicos Greco- Romanos; Grandes Cabeças e Mulheres Trágicas.

Ao olhar com atenção sua obra composta por esculturas, desenhos, pinturas e escritos, percebe-se que a natureza e o sexo são elementos determinantes em todo o conjunto e sempre presentes em todas as suas manifestações artísticas e existenciais.





Tornando o conhecimento pertinente na paisagem da realidade

Ou

A Paisagem da Arte Educação: Referenciais Contemporâneos



Se aliás, tentássemos reestabelecer a via de acesso dos sonhos que podem preparar a descoberta do aço, talvez víssemos que essa conquista técnica deve muito ás imagens iniciais. Entretanto, para entrar nessa via de acesso dos sonhos seria preciso abandonar as perspectivas prematuramente objetivas e racionais; apenas um racionalismo de férias pode assumir a liberdade de tais devaneios.

Gaston Bachelard



Um dos grandes desafios a vencer como educadora é conciliar a prática pedagógica à concepção vigente na estrutura educacional, uma vez que há um grande distanciamento do processo da formação acadêmica para a assunção profissional. Outra questão posta, não exclusiva à realidade da educação no espaço escolar, diz respeito à necessidade de uma política educacional baseada no diálogo e na reflexão com o conjunto de sujeitos sociais implicados na compleição da Escola para que possam construir seu próprio projeto político pedagógico.

De posse dessa visão mais libertária, entendemos que a elaboração dos projetos pedagógicos criados para atender o currículo escolar implica na revisão sobre quais são os conteúdos escolares relevantes para a formação do cidadão. Para tanto, buscamos aqui colocamos em pauta, para analisar especialmente os conteúdos e os fundamentos da metodologia relacionados à temática leitura de imagem.

Apostando em um espaço construtivo para a área de arte na Escola, é necessário a realização de propostas pedagógicas mais coerentes com os referenciais contemporâneos de seu ensino.

Trata-se, pois, de proposições referendadas em abordagens que consideram o aluno como sujeito da aprendizagem; o conhecimento como construção; o sistema simbólico culturalmente construído e o respeito ao processo cognitivo, afetivo e social como elemento de interação para o diálogo do processo de ensino–aprendizagem, acrescentando a proposição de trabalho com temas geradores de investigação ou projetos de pesquisa.

É de conhecimento que o processo ensino-aprendizagem vivido na relação aluno-escola traz angústias e obstáculos que exigem do educador percorrer o caminho da formação continuada e da auto- eco- reorganização, na busca de orientação por processos adequados ao seu contexto.

Na busca da superação das barreiras educacionais, descobri que a formação acadêmica inicial nos direciona para uma concepção de educação, na qual a escola se coloca como lócus de transmissão de um conhecimento universalista que se presta aos interesses das classes dominantes. No entanto, esse conhecimento traz em si contradições que extrapolam tais interesses e dão acesso a novas construções de saberes.

Assumindo assim uma postura crítica e analítica multidimensional entre educando/ensino de arte e educadora/aprendizagem em arte estaremos construindo nossas teorias ao negarmos uma tradição autoritária; estaremos nos apropriando do que sabemos e nos dando conta do que ainda não conhecemos.

Nesse contexto é preciso aprender a exercitar o poder da percepção, o poder do olho sobre o novo para que possamos compreender diferenças sutis desvelando o desconhecido ou nebuloso com a ousadia de quem rompe um olhar viciado. Um olhar que não teme a diversidade de perspectivas novas e diferentes teorias.

Nesse sentido, o conhecimento deve ser (re)construído para que novas relações sociais, pessoais e profissionais surjam na prática pedagógica, valorizando assim os diversos saberes que fortalecem uma concepção transdisciplinar de educação. Aqui, a produção do conhecimento, a ciência e o senso comum se encontram e se transformam mutuamente, valorizando aspectos cognitivos e considerando as experiências vividas pelos educandos no cotidiano escolar e social. Nessa interação de sentimentos, desejos, afetos e prazeres, o conhecimento se efetiva numa relação crítica e dialógica com a escola propiciando um ensino de arte significativo e voltado para os interesses da humanidade.

O ensino de Arte está permeado por uma pluralidade de métodos e linguagens que bem compreendidos e assumidos, proporcionam ao aluno o desenvolvimento de saberes artísticos e estéticos, que possibilitam interpretar e compreender a produção artística e cultural de diferentes épocas, culturas e povos.

O objetivo é garantir ao educando uma prática educativa que entrelace vivência com os conhecimentos sistematizados pela escola, de modo a formar “competências culturais” significativas e úteis para o seu cotidiano. Portanto, enquanto educadoras temos o papel fundamental de adotar uma postura que propicie interpretar e reelaborar os significados das características, interesses e necessidades dos nossos educandos. Esse compromisso requer nossa capacitação, atualização e participação individual e coletiva na transformação das relações hierárquicas estabelecidas na Escola e em sala de aula, no sentido de tomar decisões, estimulando a efetiva participação dos sujeitos envolvidos.

A importância de um ensino idealizado e praticado nesses termos possibilita procedimentos adequados numa proposta pedagógica em arte, a qual privilegie a descoberta de seus códigos e signos e de sua trajetória através dos tempos, numa visão humanista que propicie um maior conhecimento de arte e também a compreensão do que se faz em arte na cidade, no país e no mundo, de forma a estruturar cidadãos com uma formação estética capaz de dialogar com os códigos, semelhanças e diferenças dos diversos contextos histórico-culturais.

Atualmente, no ensino de Arte, assim como em outras áreas do conhecimento, muitas questões estão sendo revistas. Para melhor compreender o processo, é significativo contextualizá-lo partindo do entendimento de que a arte no espaço educativo é resultado da sua história, de sua origem, de diferentes propostas e abordagens teórico-metodológicas, de retrocessos e conquista pedagógicas e políticas que resultaram, nas ultimas décadas, mudanças significativas nas práticas formativas e de ensino.

Herdamos desse processo histórico alguns danos pedagógicos que ainda marcam o percurso do ensino de Artes, como o fazer espontâneo, aprendizado de técnicas pela técnica, centralização na história da Arte, polivalência, arte tradicional contra arte popular ou folclore. Em contraposição a esse eixo conservador, o ensino de arte contemporâneo tem promovido mudanças que defendem a necessidade de um maior diálogo interpretativo das diferentes produções artísticas à luz do contexto cultural; o multiculturalismo pautado na defesa de uma maior articulação entre diferentes matrizes culturais; maior relação contextual com causas sociais; alfabetização artística e estética.

No que diz respeito à área de artes visuais, que é o meu campo de atuação, destaco a cultura visual como um dos eixos norteadores para a construção de reflexões pertinentes ao repertório sobre os fundamentos para a realização de leitura de imagens, ou seja, interpretações visuais.

A cultura visual sugere que a produção e a leitura visual são afetadas pelo repertório cultural dos sujeitos. Ressaltamos alguns princípios articulados por Nascimento (2006) a respeito da questão:



O foco não é a bibliografia ou o sujeito como gênio – A atenção se volta para a produção visual em geral e como fixam e disseminam modos de ver, pensar, fazer e dizer. (...) o foco principal da cultura visual é a visualidade, comumente entendida como interpretações visuais construídas historicamente pelos sujeitos em diferentes épocas. Trata-se dos regimes de enunciação visual ou os modos como passamos a ver de determinada(s) maneira(s) e não de outra(s). (...) A cultura visual não faz hierarquizações entre as chamadas “obras de Arte” e outras modalidades de produção visual. (...) Ela desconfia do passado e o usa para questionar o presente de modo a enxergar novas veredas em relação ao futuro imediato; (...) também não separa teoria e prática por entender que o saber enseja um fazer e que o fazer desvela um saber; (...) O foco da cultura visual é a interpretação das interpretações. (...) Não contradiz outros referenciais do ensino de Arte “pós-moderno” – a análise de imagens é o ponto de continuidade entre a abordagem triangular, o multiculturalismo e a cultura visual (...)



Assim a reinvenção de nossa prática na Escola, esta permeada pela concepção multiculturalista, na qual questões como o papel da mulher na história da Arte, qual história da Arte está sendo discutida, a produção artística de outras culturas, são discutidas e priorizadas.

Arte e Educação são práticas que se relacionam com outras áreas do conhecimento, se articulando com a pedagogia através de métodos, etapas e esquemas; com a sociologia, no entendimento de conceitos como cultura e sociedade; com a história da Arte como um elemento contextual da cultura humana e ainda com a antropologia no sentido de seus valores e sentidos culturais, pretendendo a criação de novas práticas na arte e na vida através de métodos que facilitem a assimilação do conteúdo da disciplina, que tem suas especificidades enquanto linguagem, mas permitindo entender a arte numa perspectiva cultural. Assim a identidade cultural é enfatizada em diferentes perspectivas, desenvolvendo a capacidade de leituras críticas e atentas de obras de arte/imagens e do mundo onde vivemos.

A arte, em suas mais variadas formas, vem sendo utilizada no processo educativo no sentido de proporcionar o desenvolvimento humano, valorizando aspectos intelectuais, sociais e estéticos, despertando a consciência social e individual, no sentido de integrar o educando ao grupo em que vive. Dessa forma, deve-se considerar que o fio condutor do processo de ensino aprendizagem em arte sempre será aquele que considera o ser humano como fruto das suas relações sociais e que, através de suas experiências e relações com o outro, interfere na natureza e, principalmente, em si mesmo como indivíduo.

Podemos então relacionar a discussão do ensino de Arte e o processo de alfabetização estética, pois o paradigma educacional em cada área vem se deslocando para um entendimento da complexidade dos processos de cognição humanos, levando em conta o conhecimento desenvolvido em diversas áreas.

No caso do Ensino de Arte o deslocamento se processa no contato com múltiplas linguagens: artes visuais, música, dança e teatro, estruturadas nos eixos produção/fruição/contextualização (fazer artístico, leitura de obra/objeto/imagem, contextualização), não necessariamente nesta ordem e na leitura de imagem como um paradigma norteador do ensino, principalmente de artes visuais atualmente, visto que a tradição histórica brasileira no ensino de Arte ainda é por demais centrada no fazer concreto (produção de objetos).

A leitura de imagens parte do princípio de que a arte é linguagem, construção humana que comunica idéias e o objeto artístico será considerado como texto visual, que para ser lido pede mais que o saber decodificar seus códigos, a sintaxe da linguagem visual, ou seja, elementos que constituem as imagens, como por exemplo: cor, linha, ponto, simetria, textura, planos. É necessário que se estabeleça relações significativas com a obra pela via da leitura interpretativa.

Ler significa buscar relações entre textos, procurando suas significações e outras leituras possíveis, como diz Paulo Freire quando fala da necessidade de leitura de mundo, no sentido de alargar nosso olhar. Portanto, no sistema de representações artísticas, é um processo de propiciar infinitas leituras que só serão concretizadas a partir das inferências dos leitores, suas memórias, vivências, imaginação, acesso e apropriação individual e social da arte. Ler e escrever são enfim um compromisso de todas as áreas com suas especialidades. Aprender a ler os códigos do sistema de representação da arte é um processo fundamental dentro na educação qualquer que seja o nível.



Nos processos contemporâneos de leitura de imagens, ao mesmo tempo em que se analisa a realidade a qual está inserida, vai-se redesenhando conceitos construídos durante a formação e a prática educativa para descrever e analisar o mundo. O processo de leitura de imagens se dá através da escolha das imagens, objetos e artistas em relação ao “tema abordado” se articulando com uma abordagem teórica metodológica que valoriza o processo de “alfabetização artística e estética” com a leitura de imagem enquanto processo de uso social do conhecimento, descortinando assim a estruturação de um caminho para produção do conhecimento estético e artístico, da própria vida.



A apreciação estética da imagem/paisagem na obra de Francisco Brennand revela referenciais estéticos que pautam, seu olhar sobre o mundo e a realidade, sendo aqui apresentadas e analisadas simultaneamente e de um lugar processual que escolhe e cria os caminhos em considerando a pertinência em relação à ampliação da construção significativa do conhecimento em arte e através da Arte.

Para captar na imagem os elementos constitutivos e significativos, se faz necessário construir, a partir das características observadas e apreendidas textualmente, uma rede de relações que façam sentido para perceber, descobrir, refletir, pensar, interpretar, escrever e fazer associações advindas da própria imagem.

Através desse processo, as relações entre o contexto imagético do Museu/Oficina, suas qualidades e características perceptíveis, deixa decidir através das inferências de quem lêr, quais os aspectos ou conteúdos das imagens lhe são relevantes. Essa complexidade interpretativa relaciona às formas de ensinar e aprender arte a partir dos vínculos das imagens com as experiências de vida, bem como da busca de articulação entre teoria e prática, possibilitando assim uma alfabetização artística e estética.

A estruturação dessa forma interpretativa e crítica de abordar a leitura das imagens, partindo da contextualização, que não começa e nem se atém à análise formal, mas a uma realidade atual, contribui com a leitura de imagens e obras contemporâneas.

Buscamos assim a fala da experiência de nossos educandos, construindo narrativas consistentes e significativas sobre as imagens que os invadem e muitas vezes contaminam. Não cabe mais perguntarmos o que nossos educandos não sabem e sim, o que já sabem e como é possível ampliar essas conexões.

A ênfase de nosso trabalho é a leitura de imagem que parte dela mesma e das conexões por ela propostas, que serão aprofundadas gerando sentido para a significação. Sendo nosso papel como educadoras provocar inquietações e curiosidades gerando leitores de imagens vinculados às dimensões formais e também socioculturais, formando leitores inventivos de si e do mundo.









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LISPECTOR, Clarice. O Livro dos prazeres ou uma aprendizagem. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1972.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Trad. Jorge Constante Pereira e revisão de Ruy de Oliveira e Henrique Fiuza. Lisboa: Edições 70, 1986.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Tradução: Eliane Lisboa. Porto Alegre; Sulina, 3.ed., 2007.

MORIN, Edgar. A suportável realidade. Cronos. Natal-RN. V.2.p.23-30, Jul/dez. 2001.

POLO, Marco. Brennand Devassa a Forma. Revista Continente Multicultural. Ano I nº6, Julho/2001. Recife: Companhia Editorial de Pernambuco – CEPE.

TUAN, Yu-fu. Topofilia. São Paulo: Difel, 1980.

Vídeos

ARAÙJO, Olívio Tavares de. O Mundo de Beleza de Francisco Brennand. Vídeo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1998.

ARRAES, Guel. Sonho Bárbaro. Vídeo: Recife, s/d.

DONOVAN, Liz. De Ovo Ominia. Vídeo: Recife, 2000.

pré-qualificação

RESUMO


A dissertação trata do Museu/Oficina Cerâmica, espaço reconstruído a partir de 1971, para abrigar a obra cerâmica e pictórica do artista Francisco Brennand, enquanto paisagem da qual emergem representações e interpretações simbólicas da relação natureza-cultura. O artista sonha uma obra que religa saberes fundamentais na produção de conhecimento da condição humana e na reforma do pensamento de uma educadora no processo de produção-de-si e re-generação na perspectiva de uma pedagogia complexa.

A ideia de inacabamento, proposta pela obra de Brennand é figurativa de uma idéia de Educação Estética, da qual o Ensino da Arte faz parte,em que os processos de conhecimento não se reduzem a etapas pré-estabelecidas ou categorias abstratas, provocando assim, múltiplas representações que permitem uma modulação de sentidos, em direção a uma elucidação intelectual, corporal, afetiva e política, provocadora de leituras de mundo contaminadas da compreensão de uma educação cujos limites, contornos, posições e significados não sejam unificados e unificadores, mas que permitam diferentes aproximações, pontos de vista e trajetórias entre o mistério da vida e as formas que esse mistério assume na arte, na ciência e na educação.

Essa leitura de mundo amplia nossas categorias de uso da linguagem artística, como forma de imputar novos sentidos ou retomar outros deixados para trás, criando outras maneiras de educar através da vontade de ação do educador, que ao invés de repetir o trabalho com as propostas pedagógicas vigentes no Ensino da Arte, pode criar-se como educador/propositor/pesquisador através de uma imaginação radical que religa arte e vida.

A paisagem, nesta dissertação se apresenta como um meio em que o ser humano exerce sua singularidade, transitando assim por campos ou camadas de conhecimentos diversos capazes de multiplicar uma visão rearticuladora do mundo. Neste sentido, tal conceito atravessa domínios disciplinares possibilitando uma cartografia cognitiva transdisciplinar, caracterizada por colaborações entre diferentes domínios cognitivos, possibilitando o compartilhamento de estratégias complementares, interrelacionais e recíprocas entre diversas formas de estruturar a produção de conhecimento através de uma educação mais sábia com vistas à tão necessária reforma do pensamento humano.







PALAVRAS-CHAVE: Arte Educação; Complexidade; Paisagem.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

vagarosa

ou a instituição imaginária da sociedade

orientação é um momento delineador do caminho da pesquisa.
tenho sorte com orientações. tenho dificuldade em segui-las, pelo simples motivo de ser lenta.
minha cognição precisa de um tempo próprio para digerir alguns conhecimentos.
sempre me pego relendo registros e em cada momento percebo com mais propriedade, faz mais sentido.
na ultima orientação, wani, a deusa orientadora,  sugeriu a leitura de castoriadis.
"quer discutir imaginário? então toma!prá... jogou "a instituição imaginária da sociedade" nos meus portentosos seios.
o semestre estava acabando. outras leituras foram priorizadas.
durante o recesso, brincando em casa com amigos, de fazer um programa de rádio, selecionei alguns livros para comentar durante "o programa" ( chamado laboratório), mostrei o "nostalgia do absoluto", o "cultura e pensamento complexo", " a terra e os devaneios da vontade", "transgressões convergentes" , a vingança de gaia" e quando fui mostrar o "a instituição imaginária da sociedade", simplesmente abri na página 192:

imaginário e racional
"é impossível compreender o que foi, o que é a história humana, fora da categoria do imaginário. nenhuma outra permite refletir estas questões: o que é que estabelece a finalidade, sem a qual a funcionalidade das instituições e dos processos sociais permaneceria indeterminada? o que é que, na infinidade das estruturas simbólicas possíveis, especifica um sistema simbólico, estabelece as relações canônicas prevalentes, orienta em uma das inúmeras direções possíveis todas as metáforas e metonímias abstratamente concebíveis? não podemos compreender uma sociedade sem um fator unificante, que fornece um conteúdo significado e o entrelace com as estruturas simbólicas. esse fator não é simplesmente "real", cada sociedade constitui seu real (não nos daremos o trabalho de especificar que esta constituição jamais é totalmente arbitrária). ele também não é o "racional", a inspeção mais sumária da história é suficiente para mostrá-lo, se assim fosse, a história não teria sido verdadeiramente história, e sim ascensão instntânea a uma ordem racional, ou no máximo, pura progressão na racionalidade. mas se a história contém incontestavelmente a progressão da racionalidade - voltaremos a isto - ela não pode se reduzida a tal. um sentido  surge ai, desde as origens, que não é um sentido de real (referido ao percebido), que não é nem verdadeiro nem falso e no entanto é da ordem da significação, e que é criação imaginária própria da história, aquilo em que e pelo que a história se constitui para começar.
não temos portanto que "explicar" como e porque o imaginário, as significações sociais imaginárias e as instituições que as encarnam, se autonomizam. como poderiam elas não se autonomizarem, já que elas são o que estava sempre ai "no início", o que, de um certo modo, está sempre ai "no início"? a bem dizer, a própria expressão " se autonomizar" é visivelmente inadequada a esse respeito; não estamos lidando com um elemento que, primeiro subordinado, "se desliga" e torna-se autônomo num segundo tempo (real ou lógico), mas com o elemento que constitui a história como tal. se existe alguma coisa que é problema, será antes a emergência do racional na história e, sobretudo, sua "separação", sua constituição em momento relativamente autônomo.
o texto continua até a página 197. ainda estou digerindo o livro. quando reencontrei wani, lá no grecom ela me perguntou se estava achando difícil a leitura.
respondi toda entusiasmada que não. na verdade leio fácil esse tipo de elaboração de pensamento, a grande questão é concatenar os tempos entre a leitura, a apropriação das idéias e conceitos e a escrita...

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

metáfora do pensamento

" a recusa é um grau importante na conquista da autonomia."

a fantasia, a imaginação e a criatividade são tão fortes quanto tudo que consideramos concreto, inexorável, seguro.
o inventado é tão forte quanto o real.
a repressão é tão forte quanto a liberdade.
pensei em quantas representações diferentes para as polaridades da existência.
vida e morte.
me ocorreu que culturalmente no ocidente, somos conduzidos a um tipo de armadilha ontológica.
nos identificamos e nos filiamos aos princípios estruturantes da vida, do compartilhar  da existência humana. Ao  passo que nos estruturamos social, científica e efetivamente em princípios de morte.

o tempo passa

" o tempo só anda de ida
a gente nasce, cresce, envelhece, morre.
para não morrer
é só amarrar o tempo no poste.
eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste.
manoel de barros

" a ciência (da poesia) tem seus mistérios porque o tempo do poema não se localiza na duração das coisas, mas na capacidade de tocar nossos sentimentos e de encher nossos corações e de abrir nossos olhos."
rubens pileggi sá

o texto

Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Centro de Ciências Sociais Aplicadas

Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado

PPE 0506 -Vícios da Paixão – Ceiça Almeida e Petrúcia Nóbrega



Sincronicidades, convergências e transgressões da paixão

Certezas abaladas

O Seminário Vícios da Paixão, oferecido, como disciplina obrigatória do PPGed, pelas Professoras Conceição Almeida e Petrúcia Nobrega, foi estruturado para possibilitar a identificação dos objetivos, argumentos e tipos de narrativas presentes no trabalho intelectual apresentado por cada um dos Professores convidados.

Na produção apaixonada de conhecimento científico, varios caminhos metodológicos permitem que as experiências do Ser no mundo sejam compartilhadas através da diletante consciência de sabermos que somos diversos de nós mesmos.

Estamos no mundo produzindo conhecimento como ato de paixão criadora, como um estado de ser que introduz novas tensões, pulsões e obcessões de nossos daimons.

Participamos da formação de um modo de operar o pensamento que reage as novas possibilidades trazidas por estas tensões e reconhecemos que a imaginação, a sensualidade, a intuição e até mesmo a paixão, pode dar acesso a um conhecimento que reconcilia o papel do ser natureza humana.

Repor a natureza apaixonada da boa ciência e de uma filosofia encarnada é manifestação ousada e mais uma tentativa de dialogicidade entre logos e poesia, entre razão e sensibilidade, entre vida e representação, entre ciência cartesiana e ciência complexa.

Esse reconhecimento de ousadia é força renovadora na integração da poética à linguagem científica. Vida e ciência imbricados visceralmente através( por meio) da arte, como criação encarnada onde ( em que) o vício do sensível não é obstáculo a ser vencido pela razão, mas sim um sintoma intimo do corpo a ser metabolizado, germinando, crescendo e se desdobrando como um princípio de criação intelectual não esquizóide. O sonho, o devaneio, a alucinação, a paixão, o vício são experimentados como um artifício, uma artimanha ao adentrarmos no campo codificado da linguagem, apresentando soluções que a reintegram à vida e à criação, de um presente percebido como constante nascimento para o passado e para o futuro, numa mobilidade, por vezes, vertiginosa para nossas bases cognitivas construídas, ainda, num paradigma de solidez.

Através (por meio) da narrativa como um (enquanto) operador cognitivo, foram-nos apresentadas várias formas de trabalho científico que consideram a paixão como mola propulsora para construção de pequenas certezas no conhecimento científico.

Considerando o trabalho científico como um escrever bem acerca do que se compreende ou como obcessão que nos move por determinados temas, percebemos que ele funciona como lentes que permitem potencializar e transpor de maneira criativa e, por vezes, metafórica, a experiência de produzir conhecimentos selecionados por aspectos que coincidem com nosso próprio pensamento. Nesse pacto arbitrário, a ciência opera por reduções e modelos produzidos por pesquisadores impulsionados por um excesso apaixonado da razão, nos dizeres de Ceiça Almeida .

É o excesso dessa razão, como um estado de ser da emoção, que deve ser analisada, como um centro do atributo de categorizar e distinguir, tão caros à metodologia científica.

O sujeito e o mundo, a parte e o todo, a prosa e a poesia, a razão e a emoção, Eros e Tanatos – sempre esse jogo de distinções como categorias necessárias para produzir conhecimento do estar no mundo por meio da linguagem e da experiência. Assumir tal posicionamento nos leva a um processo psicanalítico da paixão cognitiva pelo conhecimento, essa esquizoidia, como caminho que agregue a força psíquica do ser no mundo sem distinções.

Sincronicidades

A inscrição corporea da experiência

Mostrava-me, portanto, rebelde às tendencias recentes da reflexão metafísica tais como elas começaram a esboçar-se. A fenomenologia não me atraia, na medida em que postulava uma continuidade entre o vivido e o real. Embora estando de acordo em reconhecer que este engloba e explicita aquele, eu tinha aprendido com minhas três professoras que a passagem de uma ordem para a outra era descontínua; que, para se atingir o real, primeiro é necessário repudiar o vivido, nem que seja para reintegrá-lo mais tarde numa sintese objetiva despida de qualquer sentimentalismo. Quanto á corrente de pensamentos que iria expandir-se com o existencialismo, parecia-me que representava o contrário de uma reflexão válida em virtude da complacencia que demonstrava relativamente as ilusões da subjetividade. Essa promoção das preocupações pessoais, à dignidade de problemas filosóficos implica um risco de desembocar numa espécie de metafísica para costureiras, desculpável a título de processo didático mas muito perigosa ao permitir tergiversações com essa missão, de que a filosofia se incumbiu até o momento de a ciência ser suficientemente forte para se encarregar dela, que consiste em compreender o ser em relação a si próprio e não em relação a mim. (Lèvi-Strauss, 1993. p. 52)

Para mim, a fenomenologia, o vivido que cria o real através da experiência, sempre foi atrante. Não via distinções. Ao escolher a academia como lugar de me pensar no mundo, venho descobrindo os encantos da distinção e o mistério da simultaneidade na produção do conhecimento com método.

Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que se escolhera representar o mundo, o corpo ganhava uma nova firmeza, a cabeça podia ás vezes se manter altiva como a de quem superou um obstáculo: a pessoa era. (LISPECTOR, 1972)

A linguagem poética, metafórica e literária passa a diferenciar e a fazer a gradação da experiência humana de produzir conhecimento por outras vias. Ser pesquisadora de uma ciênca que é o mistério vivo que se não indaga, indagado por um método que permite o espaço da criação.

E por aqui, basta tanta poesia. Em excesso se tergiversa, sentimentaliza e se “desemboca numa metafísica para costureiras”, nos dizeres de Lèvi-Strauss em Tristes Trópicos. É preciso cuidado com excessos.

Convergências

A construção de todo um campo de discurso, como estratégia para aguçar o olhar/leitor sobre uma estrutura textual recorrente e superposta. O livro Tristes Trópicos, consiste de diversos textos concorrentes em um mesmo plano ( isso me faz lembrar da geometria descritiva, em que, se não me engano, “concorrente no mesmo plano” significa ter-se duas ou mais retas sobre um diedro, um dos campos possíveis do ponto está entre dois eixos e mesmo assim não se encontrarem no mesmo plano pois tem coordenadas diferentes. Eresia matemática deixada de lado), pode-se falar de um texto filosófico, reformista, de viagem, com uma tese etnográfica.

O conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado por um estilo; formam sistemas. Estou persuadido de que esses sistemas não existem em número limitado e que as sociedades humanas, tal como os indivíduos – nos seus jogos, nos seus sonhos ou nos seus delírios -, nunca creêm de maneira absoluta, limitando-se sim a escolher certas combinações, num repertório ideal que seria possível reconstruir. Ao fazermos um inventário de todos os costumes observados, de todos aqueles que foram imaginados nos mitos, de todos aqueles também evocados nos jogos das crianças e dos adultos, nos sonhos dos indíviduos, sãos ou doentes, e nos comportamentos psicopatológicos, conseguiremos organizar uma tabela periódica, como a dos elementos químicos, na qual todos os costumes reais ou simplesmente possíveis apareceriam agrupados em famílias e onde apenas nos bastaria reconhecer aqueles que a sociedade adotaram efetivamente.(Lèvi-Strauss, 1993. p.165).

Todo o trecho na sequencia desse parágrafo de abertura da quinta parte de Tristes Trópicos, – Cadiueus – Uma Sociedade Indígena e o seu Estilo, é seguido por várias descrições que servem de esteio para a conclusão de que, mesmo numa amostragem de 400 desenhos faciais de uma determinada tribo, existem recorrencias que grosso modo, acontecem por um certo consentimento em aceitar e escolher em nome do coletivo, para manter coesa essa entropia chamada vida em sociedade.

Aqui, teço nas leituras realizadas a convergencia que percebi entre Lévi-Strauss e Merleau-Ponty, ao ler um artigo sobre Tristes Trópicos, de Clifford Geertz quando ele diz que o radicalismo reformista no texto de Lévi-Strauss é sensorial e simbolista.

Transcrevo uma citação que diz dessa convergencia:

Encaro essas predileções [por ver o espaço e o tempo em termos qualitativos, e assim por diante] como uma forma de sabedoria que os povos primitivos põem simultâneamente em prática: os povos primitivos alcançaram, com rapidez e facilidade, uma paz de espírito pela qual lutamos, à custa de inúmeras recusas e irritações. Melhor faríamos em aceitar as verdadeiras condições de nossa experiência humana e em reconhecer que não está ao nosso alcançe nos emanciparmos por completo de sua estrutura ou de seus ritmos naturais. O espaço tem valores que lhe são peculiares, assim como os sons e aromas têm suas cores e os sentimentos têm seu peso. A busca desse tipo de correspondência não é uma brincadeira de poeta nem um campo de mistificação, como houve quem se atrevesse a dizer sobre o “Sonnet des voyelles” [“Soneto das vogais”], de Rimbaud; esse soneto é hoje indispensável para o estudioso da linguagem que conhece a base não da cor dos fenômenos, pois esta varia conforme cada interpretação, mas da relação que une um fenômeno a outro e abrange uma gama limitada de possibilidades. Essas correspondências oferecem ao estudioso um tereno inteiramente novo, que ainda poderá ter ricas safras que oferecer. Se os peixes são capazes de fazer distinção estética entre odores, em termos de claridade e escuridão, e se as abelhas sabem classificar a força da luz em termos de peso – a escuridão lhes é pesada, enquanto a luz brilhante é leve -, do mesmo modo deve afigurar-se para nós o trabalho do pintor, do poeta e do compositor, assim como os mitos e símbolos do Homem primitivo: senão como uma forma superior de conhecimento, pelo menos como a forma mais fundamental de conhecimento, e a única que todos temos em comum. (Lévi-Strauss, 1961, p. 126-127. In Geertz, 2006, p. 60-61)

Separados no tempo e no espaço, os Narradores do Sensível Merleau-Ponty e Lévi-Strauss além de todos os intelectuais que passaram por aqui em seus seminários, trataram de experiências equivalentes dessa paixão-vício que é boa para pensar sensível e inteligivelmente e partiram de pespectivas corporais, filosóficas e científicas diferentes desse Ser-Estar no mundo, gênese dos sentidos através dos quais questionamos e buscamos compartilhar da experiência que permite criar métodos para classificar a recorrencia das narrativas dentro do sistema das culturas humanas.

A paixão aqui instaura uma estratégia metodológica para religar conhecimento científico (logos) e conhecimento mítico (mythos) para fazer uma ciência que elege procedimentos que se aproximam em muito da arte.

A arte tomada com metáfora, de um conhecimento sensível e inteligível, é uma representação na qual se pode ver melhor o truque de espelhos que chamamos realidade, atuando como um operador cognitivo estético e uma ferramenta epistemológica.



Transgressões no contorno do inesperado

Entre o vivido e o sonhado



Por conceber a produção de conhecimento contemporâneo, como um exercício que vem alargando os limites disciplinares, permitindo compartilhar com afetividade, estratégias de pensamentos e sabedorias que fazem parte, das referências humanas para ler o mundo, imerso na incerteza, e contribuir para a reforma que vem ocorrendo no pensamento humano essa “utopia realista”, é essencial fazer do trabalho de pesquisa científico um constante ligar, religar e dar voltas concêntricas em desequilibro sobre nossas paixões/pulsões temáticas, sobre nós mesmos, enfim encontrar as chaves das clarabóias de si, nos dizeres de Francisco Ivan.

Analisando as paixões do meu pensamento demoníaco, esse produtor de conhecimento, encontrei um olhar recorrente sobre o cenário onde se representa a atuação humana, esse quadro de vida, a paisagem, esse conceito clarabóia de mim, uma bricoleur.

Na arte da bricolagem, o onírico e o poético são elementos constitutivos do objeto fabricado, não importando a sua rusticidade. È a arte do improviso, do intuído, em que a imaginação, aliada a uma grande habilidade manual, desempenha papel fundamental. (Werneck, 2008, p. 326)

Se abríssemos as pessoas, encontrar-se-iam paisagens, disse certa vez Agnés Vardal (apud SUUSEKIND, 1990, p. 156). Tratando-se de Lévi-Strauss, talvez isso seja verdadeiro, pois é a partir de suas paisagens internas que começa a ver os trópicos. Toda paisagem – diz Lévi- Strauss(1996, p.54) apresenta-se,de início, como uma imensa desordem que nos deixa livres para escolhermos o sentido que preferirmos lhe atribuir.( in Werneck, 2008, p. 226)

É preciso escolher nessa paisagem a experiência estética que amplia o olhar, propiciando outros aprendizados mais ampliados da realidade, pois toda paisagem é composta por uma combinação de vários elementos que se apresentam aos nossos olhos como cores, formas, linhas, texturas, escalas, dimensões e pelo significado que a ela atribuímos a partir de nossas idéias, valores e sentimentos. Ou seja, a paisagem passa a ser entendida como fenômeno vivido, através de aspectos subjetivos das relações humanas com o ambiente, como criação humana ligada a uma maneira de integrar nossos conhecimentos em relação à Terra e à vida.

Neste sentido a simbologia da paisagem é analisada de maneira que as representações da realidade passam a ser tão importantes quanto à própria realidade.

“A imaginação é considerada aquilo que dá significado ao mundo, pois é por meio desta que o ser humano inicialmente realiza as transformações que condicionam sua existência na natureza. A imaginação não resulta apenas dos sentidos nem apenas do intelecto, e seu papel não se vincula puramente à reprodução social. Através de metáforas, a imaginação atribui novos significados aos diversos aspectos naturais e sociais da realidade”. (Cosgrove e Jackson, 2000. p.12).



Aqui ocorre a meu ver o inesperado imbricamento do conceito de paisagem no pensamento complexo: a utopia e o realismo na produção de representações. A arte ousa provocar fissuras na percepção da natureza e da cultura. A produção da paisagem situa-se entre o sonho e a realidade. Faz-se necessário encontrar novas e antigas interdisciplinaridades que enriqueçam esse conceito.



“A terra (o topos), paisagem e ferramenta de produção, situa-se entre o sonho e a realidade. O paisagista tem em consideração a realidade do solo (o meio ambiente) e projeta um sonho. Partilha o seu trabalho. Colabora com a natureza, com o inesperado. O território, quanto a ele, muda de função e de representação: podemos sair do mundo da exploração para entrar no da cultura.” (Châteauvallon, 1996, p. 17).



Significado e imaginação passam a ser termos fundamentais para produzir conhecimento, pois ao incluir em sua abordagem elementos significantes para diferentes sujeitos, a paisagem deixa de ser vista como pano de fundo das atividades e acontecimentos humanos e passa a ser criada, vivida, configurada tanto pelas percepções, valores e atitudes individuais como pelas representações coletivas e, desse modo, sempre se traduzindo numa oportunidade de (re)construção de significações do conhecimento, pois rompe com tradições e reinventa a representação da natureza idealizada pela perspectiva renascentista, começa a ser abalada no modernismo. A representação da paisagem assume uma formulação construída culturalmente, junto com a construção do mundo e de nós mesmos.

E aqui o texto termina sem acabar, posto que prossiga sua tessitura na pesquisa sobra a Paisagem na Obra de Francisco Brennand.

“Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. (...) Perdemos sem cessar nossas idéias. É por isso que queremos tanto agarrar-nos a opiniões prontas.” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.259).





BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL



LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Trad. Jorge Constante Pereira e revisão de Ruy de Oliveira e Henrique Fiuza. Lisboa: Edições 70, 1986.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2002.



OUTRAS LEITURAS

CHÂTEAUVALLON, Encontros de. Para uma Utopia Realista. Lisboa: Instituto Piaget Divisão Editorial, 1996.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI. Félix. O que é a Filosofia? (trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso

Muñoz). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992

GEERTZ, Clifford, Obras e vidas: o antropólogo como autor, por Cliford Greetz; tradução Vera Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

LISPECTOR, Clarice. O Livro dos prazeres ou uma aprendizagem. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1972.